SUGESTÃO – Livro: As Raparigas, de Emma Cline

SUGESTÃO – Livro: As Raparigas, de Emma Cline

As raparigas, de emma cline

Califórnia. Verão de 1969. Evie, uma adolescente insegura e solitária, avista um grupo de raparigas no parque e fica fascinada com a aura de abandono que as envolve: vestem-se de forma descuidada, andam descalças e parecem levar uma existência feliz à margem das convenções. Dias depois, Suzanne, uma das raparigas, convida Evie a acompanhá-la até às montanhas, ao rancho isolado onde vive numa comunidade organizada em torno de Russell, músico frustrado e líder carismático. Desesperada por ser aceite, Evie mergulha numa espiral de drogas e amor livre. Porém, à medida que se vai afastando da mãe e das rotinas da vida, e à medida que a sua obsessão por Suzanne se intensifica, Evie não se apercebe de que está a um passo de uma violência inimaginável, a caminho daquele momento na vida de uma rapariga em que uma simples escolha pode determinar o futuro. Um retrato excecional da fragilidade adolescente, uma reflexão sobre as decisões que nos marcarão toda a vida e uma evocação daqueles anos de paz e amor em que germinava um lado obscuro…

Autor Emma Cline
Editor Porto Editora
Data de lançamento novembro 2016
EAN 978-9720048219
ISBN 9789720048219
Dimensões 15 x 23,5 cm
Nº Páginas 272
Encadernação Capa mole

Livro inspirado nas jovens que colaboraram com Charles Manson foi o mais disputado pelas editoras na Feira de Frankfurt

“Verifiquei que o autocarro tinha sido esvaziado e reconstruído, o interior tosco e cheio de elementos decorativos, ao estilo da época – o chão com uma rede de tapetes orientais, cinzentos de pó, almofadas compradas em lojas de segunda mão quase sem enchimento. O cheiro forte de incenso no ar, prismas oscilando contra as janelas. Papelão rabiscado com frases patetas.

Havia mais três raparigas no autocarro; viraram-se todas para mim com avidez, com uma atenção brutal, que interpretei como lisonjeira. Cigarros andavam de mão em mão enquanto elas me olhavam de alto a baixo, com um ar de regozijo e intemporalidade. Um saco de batatas verdes, cachorros quentes com ar pastoso. Um saco maior de tomates húmidos, demasiado maduros. «Estamos numa de comida», disse Donna, embora eu não entendesse o que isso significava ao certo. A minha mente concentrava-se nesta súbita mudança de sorte, com o lento gotejar de suor sob os meus braços. Estava constantemente à espera de ser apontada, de ser identificada como uma intrusa que não devia estar ali. O cabelo demasiado limpo. Pequenos gestos relacionados com a apresentação e o decoro que pareciam não interessar a mais ninguém. O cabelo a obstruir-me a visão das janelas abertas, intensificando a sensação de deslocamento, o carácter inesperado da minha presença naquele estranho autocarro. Uma pluma pendurada do retrovisor com um cacho de contas. Alguma lavanda seca no tabliê, descolorida pelo sol.

– Ela vai ao solstício – entoou Donna -, ao solstício de verão.

Estávamos no princípio de junho e eu sabia que o solstício era

no fim do mês: não disse nada. O primeiro de muitos silêncios.

– Vai ser a nossa oferenda – anunciou Donna às outras. Com um risinho nervoso. – Vamos sacrificá-la.

Olhei para Suzanne – mesmo a nossa breve história parecia ratificar a minha presença no meio delas -, mas Suzanne estava a um canto, de lado, concentrada na caixa de tomates. Pressionava-lhes a pele e deitava fora os podres. Ocorrer-me-ia mais tarde que Suzanne era a única que não parecia deslumbrada com o facto de nos termos cruzado na estrada. Algo de formal e distante no seu afeto. Só posso pensar que era uma atitude protetora. Que Suzanne se apercebera da minha fragilidade, gritante, óbvia: ela sabia o que acontecia às raparigas

fracas.

Donna apresentou-me às outras e tentei memorizar os nomes. Helen, uma rapariga que parecia ter mais ou menos a minha idade, embora talvez só por causa dos totós. Era bonita, naquele jeito juvenil das beldades locais, o nariz curto e achatado, os traços acessíveis, embora com um prazo de validade evidente. Roos. – Abreviatura de Roosevelt – explicou. – Franklin D. – Era mais velha do que as outras e tinha uma cara tão redonda e rosada que parecia saída de um livro de contos de fadas.

Não conseguia lembrar-me do nome da rapariga alta que ia a conduzir: nunca mais voltei a vê-la.

Donna convidou-me a sentar-me, dando palmadinhas numa almofada bordada.

– Vem para aqui – disse, e eu sentei-me na pilha comichenta de almofadas. Donna tinha um ar estranho, um pouco aparvalhado, mas eu gostava dela. Toda a sua cobiça e mesquinhez eram apenas superficiais.

O autocarro deu um solavanco: as minhas entranhas revolveram-se e retesaram-se; ainda assim, não recusei o jarro de vinho tinto barato quando mo passaram; com tanto solavanco, entornei vinho nas mãos. Elas estavam com um ar feliz, sorridente, cantavam por vezes trechos de canções, quais campistas em torno de uma fogueira. Eu procurava absorver as particularidades – o modo como davam as mãos sem qualquer constrangimento e usavam palavras como «harmonia» e «amor» e «eternidade». O modo como Helen se comportava como um bebé, sempre a puxar os totós e a falar com uma vozinha infantil, como se afundou abruptamente no colo de Roos, na esperança de que esta fosse na onda e cuidasse dela. Roos não se queixou: parecia impassível, bondosa. Aquelas faces rosadas, o cabelo louro liso sobre os olhos. Embora, mais tarde, eu viesse a achar que talvez se tratasse menos de bondade do que de um vazio amortecido onde deveria haver bondade. Donna perguntou-me coisas sobre mim e as outras seguiram-lhe o exemplo, num constante fluxo de perguntas. Não conseguia resistir ao prazer de ser o centro das atenções. Inexplicavelmente, elas pareciam gostar de mim; a ideia era estranha e animadora, uma prenda misteriosa que eu não queria sondar demasiado. Podia até ver o silêncio de Suzanne sob uma luz propícia, imaginando que ela era tímida como eu.

– Que bonita – elogiou Donna, tocando-me na camisa. Helen também beliscou uma manga. – És tal qual uma bonequinha. O Russell vai adorar-te.

Atirou o nome assim, sem mais nem menos, como se fosse inimaginável eu não saber quem o Russell era. Helen riu-se ao ouvir o nome e meneou os ombros, como quem chupa um doce. Donna viu-me pestanejar de incerteza e riu-se.

– Vais adorá-lo – disse. – O Russell é diferente de toda a gente. A sério. Estar com ele é como uma trip sem químicos. Como o sol ou parecido. Assim uma cena grande e certa.

Fitou-me para ter a certeza de que eu a escutava, pareceu contente com a minha atenção.

Disse que o sítio para onde íamos tinha a ver com um modo de vida. Russell estava a ensiná-las a descobrir um caminho para a verdade, a libertar os seus eus verdadeiros daquilo que estivesse enroscado dentro deles. Falou de alguém chamado Guy, que em tempos treinara falcões, mas que se juntara ao grupo e agora queria ser poeta.

– Quando o conhecemos, ele estava numa trip mesmo muito esquisita, só comia carne e assim. Pensava que era o diabo ou coisa do género. Mas o Russell ajudou-o. Ensinou-o a amar – disse Donna.

– Toda a gente pode amar, transcender as tretas merdosas, mas há tantas coisas que nos emperram e paralisam…

Não conseguia imaginar como Russell pudesse ser. Tinha o ponto de referência limitado de homens como o meu pai ou de rapazes por quem tivera paixonetas. O modo como estas raparigas falavam de Russell era diferente, a sua adoração mais prática, sem nada dos acessos amorosos adolescentes, de brincadeira, que eu conhecia. A certeza delas era inabalável; evocavam os poderes e a magia de Russell como se fossem tão amplamente conhecidos como a influência da Lua nas marés ou a órbita da Terra.

Donna disse que Russell era diferente de todos os outros seres humanos. Que era capaz de receber mensagens de animais. Que conseguia curar uma pessoa com as mãos, extrair todos os males que afetavam alguém de uma forma tão radical como um cirurgião extrai um tumor.

– Ele vê todas as partes que nos constituem – acrescentou Roos. Como se isso fosse uma coisa boa.

A possibilidade de ser avaliada e julgada suplantava todas as preocupações que eu pudesse nutrir em relação a Russell. Com a idade que tinha, eu era, em primeiro lugar e acima de tudo, alguém a ser julgada, e isso fazia com que, em todas as interações, o poder caísse nas mãos da outra pessoa.

A sugestão de sexo nos rostos delas quando falavam de Russell, uma vertigem de baile de estudantes. Percebi, sem que ninguém o dissesse claramente, que todas dormiam com ele. Uma tal situação fazia-me corar, deixava-me intimamente chocada. Nenhuma parecia ter ciúmes das outras.

– O coração não é proprietário de coisa nenhuma – declarou Donna. – O amor não tem nada a ver com isso – disse, apertando

a mão de Helen, um olhar muito particular entre as duas. Embora Suzanne estivesse a maior parte do tempo em silêncio, afastada de nós, reparei que o seu rosto mudou quando se falou de Russell. Uma ternura de esposa nos olhos dela que eu também queria sentir.

É natural que eu tenha sorrido intimamente enquanto observava o padrão familiar da cidade que ia passando, o autocarro a avançar da sombra para o sol. Eu crescera naquela terra, conhecia-a tão profundamente que nem sequer sabia a maior parte dos nomes das ruas, navegando, pelo contrário, de acordo com pontos de referência, visuais ou incrustados na memória. A esquina onde a minha mãe torcera o tornozelo, levava um calça-casaco malva. O bosque que sempre me parecera vagamente frequentado pelo mal. A drogaria com o toldo torto. Através da janela daquele autocarro desconhecido, a textura acidentada de um velho tapete sob as pernas, a minha cidade natal parecia purgada da minha presença. Era fácil deixá-la para trás.

Novembro 8th, 2016 Por